sexta-feira, maio 31, 2013

Anotações sobre a modernidade na obra de Anthony Giddens

Tradição e modernidade: continuidade e descontinuidade

O que é a tradição? “A tradição, digamos assim, é a cola que une as ordens sociais pré-modernas”, afirma Giddens. A tradição envolve, de alguma forma, controle do tempo.“Em outras palavras, a tradição é uma orientação para o passado, de tal forma que o passado tem uma pesada influência ou, mais precisamente, é constituído para ter uma pesada influência para o presente”. (GIDDENS, 1997: 80)

A Tradição integra e monitora a ação à organização tempo-espacial da comunidade (ela é parte do passado, presente e futuro; é um elemento intrínseco e inseparável da comunidade). Ela está vinculada à compreensão do mundo fundada na superstição, religião e nos costumes; ela pressupõe uma atitude de resignação diante do destino, o qual, em última instância, não depende da intervenção humana, do “fazer a história”. Dessa forma, conhecer é ter habilidade para produzir algo e está ligado à técnica e à reprodução das condições do viver. A ordem social sedimentada na tradição expressa a valorização da cultura oral, do passado e dos símbolos enquanto fatores que perpetuam a experiência das gerações.

Por outro lado, a tradição também se vincula ao futuro. Mas este não é concebido como algo distante e separado, mas como uma espécie de linha contínua que envolve o passado e o presente. É a tradição que persiste, remodelada e reinventada a cada geração. Não há um corte profundo, ruptura ou descontinuidade absolutas entre o ontem, hoje e o amanhã.

A tradição envolve o ritual; este constitui um meio prático de preservação. Nas sociedades que integram a tradição, os rituais são mecanismos de preservar a memória coletiva e as verdades inerentes ao tradicional. O ritual reforça a experiência cotidiana e refaz a liga que une a comunidade, mas ele tem uma esfera e linguagem próprias e uma verdade em si, isto é, uma “verdade formular” que não depende das “propriedades referenciais da linguagem”. Pelo contrário, “a linguagem ritual é performativa, e às vezes pode conter palavras ou práticas que os falantes ou os ouvintes mal conseguem compreender. (...) A fala ritual é aquela da qual não faz sentido discordar nem contradizer – e por isso contém um meio poderoso de redução da possibilidade de dissenção”. (Id.: 83)

A “verdade formular” na qual se funda o ritual necessita do intérprete, e este é o guardião da tradição. Ele se caracteriza pelo status, isto é, o papel que ocupa na ordem tradicional. Diferentemente do perito, o especialista da ordem social moderna, o conhecimento do guardião conhecimento se reveste de mistério, se funda na pura crença e tem um sentido místico inacessível ao comum, ao leigo:

“A tradição é impensável sem guardiães, porque estes têm um acesso privilegiado à verdade; a verdade não pode ser demonstrada, salvo na medida em que se manifesta nas interpretações e práticas dos guardiães. O sacerdote, ou xamã, pode reivindicar ser não mais que o porta-voz dos deuses, mas suas ações de facto definem o que as tradições realmente são. As tradições seculares consideram seus guardiães como aquelas pessoas relacionadas ao sagrado; os líderes políticos falam a linguagem da tradição quando reivindicam o mesmo tipo de acesso à verdade formular”. (Id.: 100)

A interpretação monopolizada pelo guardião constitui uma verdade acessível apenas aos iniciados, isto é, aos que aceitam a verdade revelada por ele e, conseqüentemente, o seu status. A tradição é intrinsecamente excludente: apenas os iniciados, os admitidos, podem participar e compartilhar da sua verdade, do ritual. A discriminação do não-iniciado, o “outro”, é fundamental para fortalecer o status do guardião e do ritual em si. O “outro” está fora, a verdade formular lhe é interdita. A identidade do “eu” vincula-se ao envolvimento com o ritual e, portanto, diferenciação em relação ao “outro”.

Nas condições da modernidade, o ritual é reinventado e reformulado. O mesmo ocorre com o guardião, substituído pelo especialista, o perito. A modernidade reincorpora a tradição, reinventa-a, e, neste sentido, também expressa continuidade. Grande parte dos valores relacionados à tradição permanecem e se reproduzem no âmbito da comunidade local. Na verdade, as primeiras instituições da modernidade não podiam desconsiderar a tradição preexistente e, vários aspectos, dependiam delas.

“Somente com a consolidação do Estado-nação e a generalização da democracia nos séculos XIX e XX, a comunidade local efetivamente começou a se fragmentar. Antes deste período, os mecanismos de vigilância eram primariamente “de cima para baixo”; eram meios de controle cada vez centralizados sobre um espectro de “indivíduos” não mobilizados”. (Id.: 115)

Porém, a modernidade teve que “inventar” tradições e romper com a “tradição genuína”, isto é, aqueles valores radicalmente vinculados ao passado pré-moderno. A modernidade, neste sentido, expressa descontinuidade, a ruptura entre o que se apresenta como o “novo” e o que persiste como herança do “velho”. A modernidade expressa:

a) ruptura com a idéia de comunidade (una e corporificada no dirigente) e passagem à idéia de sociedade (dividida em interesses conflitantes, classes antagônicas e grupos diversificados);

b) ruptura com a idéia e a prática teológico-política do poder político encarnado na pessoa do dirigente e passagem à idéia da dominação impessoal ou da dominação racional, isto é, nascimento da idéia moderna de Estado.

Para Giddens, a modernidade “refere-se a estilo, costume de vida ou organização social que emergiram na Europa a partir do século XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influência”. (1991: 11). Ele observa que vivemos uma época marcada pela desorientação, pela sensação de que não compreendemos plenamente os eventos sociais e que perdemos o controle. A modernidade transformou as relações sociais e também a percepção dos indivíduos e coletividades sobre a segurança e a confiança, bem como sobre os perigos e riscos do viver:

“A modernidade, pode-se dizer, rompe o referencial protetor da pequena comunidade e da tradição, substituindo-as por organizações muito maiores e impessoais. O indivíduo se sente privado e só num mundo em que lhe falta o apoio psicológico e o sentido de segurança oferecidos em ambientes mais tradicionais”. (GIDDENS, 2002: 38)

Para Giddens, não basta inventar novas palavras para explicar este redemoinho, mas sim olhar com atenção a própria modernidade e analisar as suas conseqüências. Eis a sua tese:

“Em vez de estarmos entrando num período de pós-modernidade, estamos alcançando um período em que as conseqüências da modernidade estão se tornando mais radicalizadas e universalizadas do que antes. Além da modernidade, devo argumentar, podermos perceber os contornos de uma ordem nova e diferente, que é “pós-moderna”; mas isto é bem diferente do que é atualmente chamado por muitos de “pós-modernidade”. (1991: 12-13)

Ele analisa a modernidade enquanto descontinuidade entre as ordens sociais tradicionais e as instituições sociais modernas. Quais as características desta descontinuidade?

1) o ritmo de mudança que a era da modernidade põe em movimento;

2) o escopo da mudança, isto é, a abrangência global desta;

3) a natureza das instituições modernas (o sistema político do Estado-nação, a dependência por atacado da produção de fontes de energia, a transformação em mercadoria de produtos e trabalho assalariado)

Mecanismos de Desencaixe: Fichas Simbólicas e Sistemas Peritos

A separação tempo-espaço propicia a condição para o desenvolvimento de mecanismos de desencaixe. Vejamos a definição de Giddens (1991):

“Por desencaixe me refiro ao “deslocamento” das relações sociais de contextos locais de interação e sua reestruturação através de extensões indefinidas de tempo-espaço”. (Id.: 29)

“Este [desencaixe] retira a atividade social dos contextos localizados, reorganizando as relações sociais através de grandes distâncias tempo-espaciais”. (Id.: 58)

Os mecanismos de desencaixe são representados por Fichas Simbólicas e Sistemas Peritos:

“Por fichas-simbólicas quero significar meios de intercâmbio que podem ser “circulados” sem ter em vista a s características específicas dos indivíduos ou grupos que lidam com eles em qualquer conjuntura particular”. (Id.: 30)

O dinheiro constitui um exemplo de Ficha Simbólica. Por que?

“O dinheiro, pode-se dizer, é um meio de retardar o tempo e assim separar as transações de um local particular de troca. (...) é um meio de distanciamento tempo-espaço. O dinheiro possibilita a realização de transações entre agentes amplamente separados no tempo e no espaço”. (Id.: 32)

“Ele é fundamental para o desencaixe da atividade econômica moderna”. (Id.: 33)

Na sociedade moderna nos encontramos permanentemente vinculados a sistemas abstratos, isto é, sistemas com os quais interagimos cotidianamente e que não se dependem diretamente de um conhecimento aprofundado da nossa parte sobre o seu funcionamento (o sistema bancário, a informática, os recursos que envolvem uma viagem de avião são exemplos). Nestes e noutros casos, confiamos em peritos, especialistas. Giddens (Id.:35), define-os: “Por sistemas peritos quero me referir a sistemas de excelência técnica ou competência profissional que organizam grandes áreas dos ambientes material e social em que vivemos hoje”.

É verdade que não consultamos peritos o tempo todo. Mas estes sistemas, nos quais encontra-se integrado o conhecimento dos especialistas, influencia continuamente muitos dos aspectos do nosso ser e agir cotidianos. Eles “criam grandes áreas de segurança relativa para a continuidade da vida cotidiana” (GIDDENS, 2002: 126). Por outro lado, os sistemas peritos atuam como mecanismos de desencaixe – porque removem as relações sociais das imediações do contexto.

Nas sociedades tradicionais, pré-modernas, a autoridade reside no território dos guardiães – os quais fornecem as interpretações fundadas na verdade formular. “A pessoa detentora do saber ou sábia é o repositório da tradição, cujas qualidades especiais originam-se daquele longo aprendizado que cria habilidades e estados de graça”, afirma Giddens (1997:104) A legitimidade do especialista também se funda no saber, mas este já não é seu monopólio e nem pode estar seguro de que a posse deste garante-lhe, de maneira automática, a confiança; e, muito menos, que sua verdade será incontestável. Sua posição enquanto perito advém basicamente do desequilíbrio entre as suas habilidades e informações e as do leigo. Porém, nas condições modernas, a especialização é sempre uma possibilidade para o leigo e, de qualquer forma, os recursos disponíveis e a circulação de conhecimento coloca este numa posição mais vantajosa do que o não-iniciado na sociedade pré-moderna. Como resume Giddens (Id.: 105):

1) a especialização é desincorporadora[1] (abandono do conteúdo tradicional), não tem um local restrito (mas vários), é descentralizada e se baseia em princípios impessoais;

2) não está vinculada à verdade formular, mas à crença na possibilidade de que um saber “x” é correto;

3) o acúmulo de conhecimento especializado envolve processos intrínsecos de especialização;

4) a confiança em sistemas abstratos, sistemas peritos, não é gerada mecanicamente pelo saber em si, pelo saber esotérico;

5) a especialização interage com a reflexividade institucional crescente, o que pressupõe processos cotidiano de perda e reapropriação de habilidades e conhecimentos.

O saber do especialista está ligado a um conhecimento universalizante. Os especialistas tendem a discordar entre si e a crítica é essencial para o seu empreendimento. Popper observou que a ciência está edificada sobre a areia movediça, isto é, ela não tem fundamento estável e o ceticismo metódico é o seu princípio. A ciência precisou se impor enquanto uma verdade, pelo menos em seus primórdios, quase tão sagrada quanto o saber com quem ela rivalizava. Porém, com o passar do tempo, ela perdeu em muito a áurea de autoridade que chegou a possuir. “De certa forma, isso provavelmente é resultado da desilusão com os benefícios que, associados à tecnologia, ela alega ter trazido para a humanidade”, ressalta Giddens (Id.:109)

De fato, a ciência não se mostrou tão certa e segura das suas afirmações – o que parecia verdadeiro num determinado contexto histórico, revelou-se falso em outras condições. Ela teve que levar em conta as incertezas e o próprio questionamento à sua verdade, elaborados fora e dentro do seu âmbito. Nas condições modernas, e esta é uma das conseqüências da modernidade, essa incerteza, que gera insegurança, atinge o âmago da experiência vivenciada, o cotidiano das pessoas. “Nas condições sociais modernas, todos os experts são especialistas. A especialização é intrínseca a um mundo de alta reflexividade, onde o conhecimento local é informação reincorporada, derivada de sistemas de um ou de outro tipo”, assinala Giddens (Id.: 110). Nos sistemas peritos, a confiança se funda na suposição da competência técnica; é um saber passível de revisão.

“O conhecimento especializado está aberto à reapropriação a qualquer pessoas com tempo e recursos necessários para ser instruída; e a prevalência da reflexividade institucional significa que há uma contínua triagem de teorias, conceitos e achados especializados em relação à população leiga”. (Id.: 113)

Quem confia tem, em geral, uma atitude fundada no ceticismo metódico, ou seja, pode retirar a sua confiança a qualquer momento. O especialista vê-se, assim, constantemente inclinado a reforçar o seu saber diante do leigo. Seus recursos variam desde o preço cobrado numa consulta até a reinvenção da tradição: Giddens (Id.: 111) observa, não sem ironia, que “os títulos e os diplomas dependurados na parede do consultório de um psicoterapeuta são mais que meramente informação; são um eco dos símbolos com os quais se cercam de figuras de autoridade tradicionais”.

Reflexividade Institucional e o Carro de Jagrená

A reflexividade constitui a terceira fonte de dinamismo da modernidade. A reflexividade da modernidade significa que as práticas sociais modernas são enfocadas, organizadas e transformadas, à luz do conhecimento constantemente renovado sobre estas próprias práticas. Nas condições da modernidade reflexiva o conhecer não significa estar certo, ou seja, o conhecimento está sempre sob dúvida e incide sobre as práticas sociais e estas sobre o mesmo. E isto se aplica tanto às ciências sociais quanto às naturais.

Por outro lado, a característica reflexiva da sociedade moderna indica a possibilidade de uma contínua geração de autoconhecimento sistemático, o qual, em geral, desestabiliza a relação entre conhecimento leigo e saber especializado (sistemas peritos).

O conhecimento (científico, especializado e leigo) é o meio da modernização reflexiva. Aplicado à atividade social, este conhecimento é filtrado pelos seguintes fatores:

1) Poder diferencial: a depender da capacidade individual (ou de grupos) de se apropriar de conhecimento especializado[2];

2) Papel dos valores: valores e conhecimento empírico se vinculam através de uma rede de influência mútua;

3) Impacto das conseqüências não-pretendidas: o conhecimento sobre a vida social transcende as intenções dos sujeitos;

4) Circulação do conhecimento social: o conhecimento aplicado altera as circunstâncias às quais ele originalmente se referia.

A modernidade reflexiva rompe com o ideal iluminista[3] de um saber fundado na razão e capaz de superar a superstição e os dogmas da tradição[4], gerando uma nova certeza – a segurança ontológica – que supere o caráter arbitrário do hábito e do costume.[5] Parecia aos iluministas – e aos seus sucessores – que a crescente informação sobre o mundo social e natural resultaria num controle igualmente crescente sobre eles. Essa pretensão de controle era, para muitos, a chave para a felicidade humana. Esta tenderia progresso e, portanto, ao aperfeiçoamento da ordem social e das condições de vida. A modernidade amplia as oportunidades e também os riscos, mas o ideal iluminista do controle do conhecimento se imagina capaz de equilibrar ambos.

É verdade que, como afirma Giddens (1991: 58-59): “A produção de conhecimento sistemático sobre a vida social torna-se integrante da reprodução do sistema, deslocando a vida social da fixidez da tradição”. Porém, o conhecimento reflexivo da modernidade solapa a certeza inerente a este, mesmo no domínio das ciências naturais. Isto significa que na modernidade a ciência é posta constantemente sob dúvida, sempre sujeita à revisão – uma certeza, um paradigma pode ser (e é) ultrapassado por novas descobertas. Dessa forma, o conhecimento sempre está sob prova e o risco de ser descartado. A reflexividade moderna potencializa este processo.

As características da modernidade, suas fontes de dinamismo (separação tempo-espaço, desencaixe e ordenação e reordenação reflexiva) produzem efeitos observáveis nas experiências do cotidiano, expressas na sensação de insegurança, ansiedade, perigos e incertezas. Anthony Giddens compara a modernidade ao Carro de Jagrená.[6] Esta metáfora traduz bem as conseqüências da modernidade. A modernidade moldou o mundo natural e social à imagem humana, mas produziu um mundo fora de controle, muito diferente daquele que o iluminismo antecipou. Isto nos impõe algumas questões: Por que a razão não controla o carro? Seria defeito do projeto ou falhas do operador? Segundo o autor, “nem os defeitos do projeto nem a falha do operador são os elementos mais importantes a produzir o caráter errático da modernidade. As duas influências mais significativas são (...): as conseqüências involuntárias e a reflexividade ou circularidade do conhecimento social”. (Id.:152)

Em condições de globalização o carro tende a ficar cada vez mais incontrolável e descontrolado.

Modernidade, globalização e Segurança Ontológica

A metáfora do Carro de Jagrená indica que a modernidade produziu um mundo perigoso, como um veículo desgovernado, o qual não podemos controlar, mas também não temos como “pular fora”. A sociedade atual é identificada a sentimentos de desorientação e mal-estar. Estamos num período de transição, de liminaridade.

“A modernidade é inerentemente globalizante”, afirma Giddens. (1991: 69) A era da globalização impõe transformações universalizantes que reconfiguram a tradição, seu abandono ou desincorporação. O local encontra-se de tal forma conectado ao global que influencia e é influenciado por este. A tradição vivenciada no locus do cotidiano, no espaço específico, é colocada em questão pela experiência vivenciada do indivíduo no tempo e espaço global. Por outro lado, o local também problematiza o global. Como nota Giddens:

“Poucas pessoas, em qualquer lugar do mundo, podem continuar sem consciência do fato de que suas atividades locais são influenciadas, e às vezes até determinadas, por acontecimentos ou organismos distantes”. (1997: 74)

“O reverso da medalha é menos evidente. Hoje em dia, as ações cotidianas de um indivíduo produzem conseqüências globais. Minha decisão de comprar uma determinada peça de roupa, por exemplo, ou um tipo específico de alimento, tem múltiplas implicações globais”. (Id.: 75)

Há uma interdependência cada vez maior entre o espaço global e o local. O global tem influência sobre as vidas individuais nos espaços locais; mas também as decisões dos indivíduos em seu cotidiano podem influenciar sobre os resultados globais. Esta inter-influência incide sobre as coletividades e grupos de todos os tipos, incluindo o Estado. Todos têm que levar em consideração essa realidade, o que pressupõe repensar os papéis, sua reorganização e reformulação.

A modernidade nas condições da globalização amplia tanto as oportunidades quanto as incertezas e os perigos. Daí a sensação de mal-estar e de desorientação. O mundo tornou-se cada vez mais um lugar inseguro e essa insegurança é sentida pelo indivíduo em sua mais remota comunidade. A experiência da modernidade em tempos globais colocou por terra as certezas: as surpresas e os riscos estão sempre à espreita e o futuro parece uma impossibilidade se pensado enquanto construção histórica a partir do passado e do presente. A modernidade na globalização se assemelha a uma grande e perigosa aventura, à qual, independente da nossa vontade, estamos presos e temos que participar:

“A experiência global da modernidade está interligada – e influencia, sendo por ela influenciada – à penetração das instituições modernas nos acontecimentos da vida cotidiana. Não apenas a comunidade local, mas as características íntimas da vida pessoal e do eu tornam-se interligadas a relações de indefinida extensão no tempo e no espaço. Estamos todos presos às experiências do cotidiano, cujos resultados, em um sentido genérico, são tão abertos quanto aqueles que afetam a humanidade como um todo. As experiências do cotidiano refletem o papel da tradição – em constante mutação – e, como também ocorre no plano global, devem ser consideradas mp contexto do deslocamento e da reapropriação de especialidades, sob o impacto da invasão dos sistemas abstratos. A tecnologia, no significado geral da “técnica”, desempenha aqui o papel principal, tanto na forma de tecnologia material da especializada expertise social”. (GIDDENS, 1991: 77)

As experiências do cotidiano na modernidade globalizada vinculam-se às questões fundamentais relativas à identidade, à percepção do “eu” e do “outro”; e, por outro lado, envolvem múltiplas mudanças e adaptações na vida cotidiana. Em tais circunstâncias, os indivíduos “sentem-se no ar” e, inseguros, se apegam à tradição. Os indivíduos resistem localmente à globalização e, simultaneamente, não podem desconsiderá-la.

A modernidade solapa a confiança fundada nos valores tradicionais e pressupõe um novo ambiente em que possa se desenvolver a “segurança ontológica”, isto é, o “ser no mundo”. A segurança ontológica “se refere à crença que a maioria das pessoas têm na continuidade de sua auto-identidade e na constância dos ambientes de ação social e material circundantes”. (Id.: 95) Ela diz respeito ao sentimento que temos sobre a continuidade das coisas e das pessoas; um sentimento inculcado desde a infância e que se vincula à rotina e à influência do hábito. A necessidade de “segurança ontológica” produz um novo ambiente de confiança, como podemos observar no quadro abaixo (Id.: 104):

AMBIENTE de CONFIANÇA
PRÉ-MODERNAS

Contexto geral: importância excessiva na confiança localizada

1. Relações de parentesco: como um dispositivo de organização para estabilizar laços sociais através do tempo-espaço.

2. A comunidade local como um lugar, fornecendo um meio familiar.

3. Cosmologias religiosas como modos de crenças e práticas rituais fornecendo uma interpretação providencial da vida e humana e da natureza.

4. Tradição como um meio de conectar presente e futuro; orientada para o passado em tempo reversível.

MODERNAS
Contexto geral: relações de confiança em sistemas abstratos

1. Relações pessoais de amizade ou intimidade sexual como meios de estabilizar laços sociais.

2. Sistemas abstratos como meios de estabilizar relações através de extensões indefinidas de tempo-espaço.

3. Pensamento orientado para o futuro como um modo de conectar passado e presente.

AMBIENTE de RISCO
PRÉ-MODERNAS
1. Ameaças e perigos emanando da natureza, como a prevalência de doenças infecciosas, insegurança climática, inundações ou outros desastres naturais.

2. A ameaça de violência humana por parte de exércitos pilhadores, senhores de guerras locais, bandidos ou salteadores.

3. Risco de uma perda da graça religiosa ou de influência mágica maligna.

MODERNAS

1. Ameaças e perigos emanado da reflexividade da modernidade.



2. A ameaça de violência humana a partir da industrialização da guerra.



3. A ameaça de falta de sentido pessoal derivada da reflexividade da modernidade enquanto aplicada ao eu.

Considerações finais

A análise de Anthony Giddens sobre a modernidade oferece-nos a possibilidade de compreender o mundo em que vivemos, nossas inseguranças, incertezas e, inclusive, as transformações nos espaços da intimidade. Contudo, sua obra e opções políticas, em especial sua análise sobre a terceira via (2001a e 2001b), geram resistências e determinados leitores não conseguem romper o olhar preconceituoso. Giddens é um daqueles autores que merecem ser lidos e estudados – nem que seja apenas para aprimorar os nossos argumentos críticos. Para divergir é preciso, primeiro, compreender.


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[1] “As características desincorporadas dos sistemas abstratos significam uma constante interação com os “outros ausentes” – pessoas que nunca vimos ou encontramos, mas cujas ações afetam diretamente características da nossa própria vida”. (Giddens, 1997: 111)

[2] “A apropriação do conhecimento não ocorre de uma maneira homogênea, mas é com freqüência diferencialmente disponível para aqueles que estão em posição de poder, que são capazes de colocá-lo a serviço de interesses seccionais”. (GIDDENS, 1991: 50)

[3] Os pensadores iluministas “acreditavam, com bastante propriedade, que quanto mais viéssemos a conhecer sobre o mundo, enquanto coletividade humana, mais poderíamos controlá-lo e direcioná-lo para nossos próprios propósitos”. (Giddens, 1997: 219)

[4] “E, em certo sentido, isso realmente ocorreu: as perspectivas cognitivas foram, na verdade, muito substancial e dramaticamente reformadas. Entretanto, a forma emocional da tradição foi deixada mais ou menos intacta”. (Id.: 86-87)

[5] De fato, a certeza iluminista foi questionada em suas próprias origens. Jean-Jacques Rousseau, em seu Discurso sobre as Ciências e as Artes, enfatiza a moral e os sentimentos, deixando a razão em segundo plano. Ou seja, ele rompe com a supervalorização do conhecimento racional. Rousseau questiona até mesmo o tipo de conhecimento ministrado às crianças e aos jovens: “Vejo em todos os lugares estabelecimentos imensos onde a alto preço se educa a juventude para aprender todas as coisas, exceto seus deveres. Vossos filhos ignoram a própria língua, mas falarão outras que em lugar algum se usam; saberão compor versos que dificilmente compreenderão; sem saber distinguir o erro da verdade, possuirão a arte de torná-los ambos irreconhecíveis aos outros, graças a argumentos especiosos; mas não saberão o que são as palavras magnanimidade, eqüidade, temperança, humanidade e coragem; nunca lhes atingirá o ouvido a doce palavra pátria e, se ouvem falar de Deus, será menos para reverenciá-lo do que para temê-lo. Preferiria, dizia um sábio, que meu aluno tivesse passado o tempo jogando péla, pois pelo menos o corpo estaria mais bem disposto. Sei que é preciso ocupar as crianças e que a ociosidade constitui para elas um perigo a evitar. Que deverão, pois, aprender. Eis uma questão interessante. Que aprendam o que devem fazer sendo homens e não o que devem esquecer”. (ROUSSEAU, 1978: 347-48)

[6] “O termo vem do hindu Jagannãth, “senhor do mundo”, e é um título de Krishna; um ídolo desta deidade era levado anualmente pelas ruas num grande carro, sob cujas rodas, contas-se, atiravam-se seus seguidores para serem esmagados”. (Giddens, 1991: 133